terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O Enterro


Antigamente, ricos estancieiros faziam uso do enterro de dinheiro. Na falta de um banco, os velhos abonados enchiam panelas de cerâmica com tudo o que podiam. Jóias moedas e o que mais pudesse ser guardado na ‘poupança’ era posto dentro da panela. Com o suporte de alguns escravos era escolhido um local para o enterro, os homens sem liberdade davam conta de abrir um buraco onde o enterro aconteceria. Geralmente um lugar inóspito e um buraco bastante fundo. Valores depositados, escravos mortos. O motivo mais óbvio era para que estes não pudessem retornar ao local em alguma fuga premeditada e roubar os pertences de seu dono. Um motivo menos óbvio, e mais sobrenatural: diz-se que os escravos eram tão leais que mesmo tendo suas vidas ceifadas sem piedade alguma, ficariam como eternos guardiões daquele tesouro campeiro, até que o patrão achasse por bem retirá-lo do buraco. Assim, meio de qualquer jeito, pode-se entender um pouco dos motivos do antigo ritual de enterro de dinheiro.

Pois numa dessas estâncias perdidas nas distâncias, e no tempo, havia um peão bastante leal e trabalhador. A escravatura, bem como os enterros já eram histórias do passado. Ainda assim, Luís, um negro já grisalho, era tratado com pouca afetuosidade por seu patrão, homem de veras ambicioso.

Em seu catre improvisado junto ao galpão, o peão dormia em uma noite muito fria, quando seus sonhos tiveram as rédeas tomadas por uma voz. Uma voz que lhe dizia: - Luís, na pedra da lagoa vais sentar, de costas pra lagoa vais ficar, doze passos vais andar e teu regalo resgatar. O negro de sonhos pouco entendia, mas aquele particularmente o impressionou, porque a voz que ouviu era bastante real e clara. Ainda assim, nada fez, sonho é sonho.

Na noite seguinte o velho peão sonhou com a pedra do lago, que nada mais era do que uma grande pedra em que as mulheres costumavam lavar roupas, já muitos anos antes de ele nascer, mas que desse fim se aposentara havia tempos. Luís a conheceu na verdade ainda na infância, quando junto de outros meninos faziam-na de impulso para dar o que eles chamavam de ‘biquinho’ na lagoa funda. E junto com a imagem da pedra, outra vez voltou a visitar seu sonho a voz que dizia - Luís, na pedra da lagoa vais sentar, de costas pra lagoa vais ficar, doze passos vais andar e teu regalo resgatar.

Naquela manhã Luís acordou um tanto quanto intrigado com aquela situação, dois sonhos daquele teor, em duas noites seguidas, mas que diabo de sonho seria aquele? O patrão o convocou para algumas tarefas no campo, no caminho o negro velho comentou com o patrão que estava cabreiro com um sonho que havia tido. O patrão demonstrou pouco ou nenhum interesse, mas ainda assim perguntou que sonho seria esse. Então o peão contou. Tudo. Sobre a voz, a pedra e o fato de ter ocorrido por duas vezes. O patrão ficou chocado. Neste mesmo dia, após a lida o velho peão descansava mateando sozinho quando recebeu a visita do patrão.

-Escuta Luís, aqui ta o teu ordenado pelo mês, mais uns pila pra ti não te ver mal já de saída. Não preciso mais dos teus serviços, amanhã mesmo tu pega teu rumo. Boa noite. – De certo o patrão havia interpretado o sonho de seu peão, e queria garantir que esses valores em sonho presenteados ao negro, não saíssem de sua propriedade, a não ser por suas mãos.

O peão não moveu um músculo, sabia que não teria pra onde ir, mas não ficaria ali se o proprietário das terras o escorraçara. Conforme lhe foi ordenado o fez. No mesmo dia em que deixou a estância já se ajeitou de peão em outra estância vizinha, de gente boa e hospitaleira, melhor para ele.

Enquanto o velho peão se adaptava a seu novo galpão e catre, o ambicioso patrão que o mandara embora escavava a doze passos da pedra da lagoa, conforme a instrução recebida por Luís. Nada encontrava. A ambição já estava cegando o homem, que escavava com muita raiva, atordoado com a idéia de que alguém pudesse tirar o dinheiro de suas terras antes de ele o encontrar. Estava já praticamente atolado em meio a lama. Nada encontrou. No outro dia repetiu o ritual, escavou cada centímetro do perímetro que os doze passos indicavam. Nada. Como as notícias correm rápido, já conhecia o paradeiro do velho peão. Pois mandou que viesse à estância para tratar de algumas pendências. O velho negro, homem muito humilde e leal, veio às pressas.

-Agora Luís nós vamos à Lagoa Funda e tu vai desenterrar o teu regalo.

O velho negro não discordou, talvez pela curiosidade que carregava. Os sonhos continuavam.

Chegando à lagoa o peão pode perceber que seu ex-patrão já havia procurado e muito pelo enterro que segundo seu sonho ali se encontrava.

- Pois trate de procurar Luís. – Dada a ordem o homem velho sentou na pedra, respirou fundo, e de mão na pá começou a contagem dos doze passos, de olhos fechados. Ao décimo segundo passo parou e abriu os olhos. Como o chão já estava todo revirado ele não sabia nem por onde começar. Resolveu dar a primeira estocada. Antes da décima estocada o peão encontrou seu regalo.

-Achei patrão, achei meu regalo! – Disse com voz entre triste e aliviado.

- Teu regalo ta aqui Luís! – Respondeu o patrão com uma garrucha nas mãos. Matou o velho negro que caiu sobre a panela que suas mãos cheias de calos acabavam de desvendar de entre a terra e a lama. O homem estava com sangue nos olhos, estava cego, a ambição falou mais alto do que qualquer outro sentimento que ele alguma vez sentira. Jogou o corpo do peão para o lado e se abraçou na panela de dinheiro, que enfim era sua.

Ao olhar para os lados, o homem ambicioso viu a silhueta de três negros, em pé em volta do buraco. Os guardiões sempre fazem justiça.

Santa Maria, 7 de Julho de 2009.